em homenagem ao brilhante Dire Straits

- Por que não?
- Porque é meu e não seu. Se você quer igual, então compre os seus!
- Mas são só discos.
- Se pra você são só discos problema seu. Pra mim é mais que isso.
- Deixa de ser boba e vamos juntar logo nossos discos.
- Para de encher o meu saco. É sempre a mesma coisa!
- Nós moramos juntos há 5 anos. Dividimos tudo e ainda assim você não quer juntar nossos discos?
- Você tem sorte de dividirmos tudo. Eu nem comia na mesa com a minha família. Se considere um privilegiado.
- Arrogante!
- Insistente!
E assim seguiam os dias. Eram feitos um para o outro. Citavam Voltaire no café da manhã e pensavam igual sobre filmes. Pode até parecer chato, mas não era.
Ela ouvia jazz e ele blues. Ela gostava do Batman e ele do Wolverine. Ela preferia café com leite e ele sem. Mas essas diferenças nunca foram importantes.
Ele trabalhava em uma gravadora e ela ficava em casa tentando terminar de escrever seu livro.
Já era noite. Ele chegou do trabalho e foi direto para a geladeira.
- Tem alguma coisa pra comer?
- Acho que tem brigadeiro.
- Só?
- Uhum. Comi o último pão que tinha no armário.
- Precisamos começar a comer comida de verdade.
- Provavelmente. Estou começando a achar que miojo não é tão saudável assim...
Ele sentou ao lado dela no sofá, lhe deu um beijo carinhoso na bochecha e ligou a tv.
- Já começou o American Idol?
- Acho que começou há uns 20 minutos. Tô torcendo pelo loiro. - ela respondeu sem muito interesse e os olhos focados no computador.
- Qual deles? O que canta country ou o que parece que tá sempre com preguiça?
- O que tá sempre com preguiça. Gosto da barba dele.
- Achei que você não gostasse de barba.
- Não gosto. Mas nele fica bonito.
- E como anda o livro?
- Uma porcaria. Ainda não consegui passar da página 43.
- Então ela ainda continua naquele banco de parque pensando?
- Sim. Já faz umas três semanas que ela ainda tá na droga do banco do parque pensando!
- Então deixa ela de lado. Desliga o computador e assisti o Idol comigo.
Como ela passou o dia inteiro tentando escrever e tinha perdido a paciência, seguiu o conselho dele sem nenhuma objeção.
Foi até a cafeteira e o café tinha acabado. Foi até a geladeira e o refrigerante tinha acabado também.
- Aaaaaaaaaaaaaaahhhhhh assim não dá! Até a coca cola acabou!
- Que foi? - ele olhou pra cozinha e ela estava gritando com a geladeira.
- VAMOS NO MERCADO AGORA!!!
- Falando com tanta educação não tem como dizer não.
Eles gostavam de andar, por isso evitavam ir de carro para lugares próximos.
Ela adorava tirar ele do sério e ficava dançando no meio da rua e cantando alto só porque ele morria de vergonha.
No caminho eles sempre passavam na mesma loja de discos que ficava próxima a uma cafeteria.
A loja tinha uma atendente muito peculiar. Ela sempre usava camisetas de bandas e o namorado dela nunca saia de lá. Eles ficavam cantando Velvet Underground e conversando com os clientes como se fossem amigos de uma vida inteira.
Ai a discussão sobre juntar os discos começava.

- Até quando vamos continuar comprando discos separados?
- Deixa eu pensar...Sempre!
- Você dorme na mesma cama que eu mas não deixa eu chegar perto dos seus discos.
- Porque meus discos são mais valiosos que nosso apartamento.
- Só porque você tem o 'Dark Side Of The Moon' autografado! - ele falou em tom baixo enquanto olhava os discos.
- E você tem o 'Who Are You' autografado também. Deve valer até mais que o meu.
- Então porque não juntamos nossos discos logo?
- Porque da última vez que fiz isso o desgraçado ficou com o meu 'Blonde On Blonde'.
- Ué. O 'Blonde On Blonde' tava na vitrola hoje de manhã. - ele tentou lembrar quando ela comprou o disco de novo.
- Claro. Porque eu pulei a janela da casa dele e peguei de volta enquanto ele trabalhava.
- Você é uma tarada por vinil.
- E você é tarado por meus lps. Eu vi o jeito como você olha pra eles.
- Eu só gosto do que você ouve.
- Fique longe deles!!!
No mercado compraram mais vinho que comida e já de volta ao apartamento ela fez o jantar para eles enquanto assistiam a um filme alternativo.
- Você teria coragem de me apagar da sua memória como ele fez?
- Só se você me apagasse da sua como ela fez.
- Eu não te apagaria, mas pintaria o cabelo de azul igual ao dela.
- Eu acho mais legal verde.
- Eu sonhei com você a noite passada...
- E o que você sonhou?
- Não me lembro muito bem, mas você fazia panquecas.
- Desde que você veio morar comigo eu nunca mais sonhei contigo.
- Mas isso já faz 5 anos.
- É porque faz 5 anos que tenho o meu sonho morando comigo.
Ela não esperava que ele dissesse algo do tipo e sem resposta lhe deu um beijo com muito afeto.
O céu já estava claro e os raios de sol invadiam a sala. Eles adormeceram no sofá e não viram o filme acabar.

Quando ela finalmente acordou ele já havia saído para o trabalho. Ela permaneceu de pijama e fez café. Decidida que sairia da página 43 esqueceu de todos os possíveis afazeres do dia e ligou o computador.
- O que você tá fazendo em casa essa hora?
- Como assim?
- Ainda tá cedo. Você não deveria estar no trabalho?
- Mas eu já trabalhei hoje e não está cedo. É noite.
- Anoiteceu? - ela foi até a cortina e ao abrir viu que já era noite - a droga do dia já acabou e eu não vi passar?
- Como você não viu o dia passar?
- Eu fiquei na porcaria da página 43 o dia inteiro!
- Posso te ajudar de algum jeito?
- Pode. Preciso de cigarros. Muitos cigarros. Quantos o dinheiro puder comprar.
- Você não vai voltar a fumar. Se quiser beber eu pego o vinho, mas cigarros não.
- Então eu sei o que pode me ajudar. Ouve aquela música comigo?
- Aquela música. De novo? Quantas vezes você ouviu ela hoje?
- Só 7 vezes. Depois disso eu parei de contar.
- Pelo amor da minha vida eu faço qualquer coisa.
Eles sentaram em frente a vitrola com uma garrafa de vinho e ela colocou o disco do 'Dion and the Belmonts' e 'A teenager in love' começou a tocar.
Ficaram sentados lá por horas, sem dizer nada. Uma garrafa, duas, três, até que o vinho acabou e eles adormeceram ali mesmo.
- Quer sua aspirina agora ou depois?
- Quero um cérebro novo. Minha cabeça vai explodir. Se você me deixar beber assim de novo eu te tranco pra fora.
- Vamos. Acorda logo. Tá um dia lindo lá fora.
- Você sabe que é o homem da minha vida né? Mas se você continuar falando alto assim vou ser obrigada a te matar.
- Ok. Então vou ter que ouvir alguns discos seus até você acordar.
- Tá! Já acordei!
Eles não eram muito convencionais, mas sempre que possível davam um jeito de ir a algum parque no fim de semana. Ele levava livros e ela um Ipod.
Sentavam embaixo de qualquer árvore que tivesse uma boa sombra e lá ficavam até que a luz do dia começasse a acabar.
- Vou andar um pouco.
- Quer companhia?
- Não. Pode continuar lendo, só quero andar que nem essas loucas que falam sozinha e olhar para o nada.
- É por motivos como esse que eu não imagino minha vida sem você.
- Não perde uma oportunidade heim?!
E com um sorriso ela foi andar pelo parque e ele a acompanhou com os olhos até aquele vestido florido sumir em meio as árvores.
Ela gostava de andar sozinha pelo simples fato ser o único jeito que conseguia pensar. Olhar para tudo que não fazia parte de sua rotina ajudava a esvaziar a mente.
Ela nunca esteve tão feliz na vida. Tinha o homem que amava e que a amava de volta. Morava em um lindo apartamento. Tinha tudo que sempre quis. Mas ainda assim faltava algo. E era isso que a estava torturando. Não saber o que era.
Tinha dinheiro, pois vivia dos direitos autoriais de uma música que o pai dela um dia escreveu. Por isso trabalho pra ela era dispensável.
- Vestido bonito.
- Obrigada. - ela respondeu com um sorriso para a garota que estava brincando na grama.
- Gostei do seu cabelo também.
- Você é muito gentil. - ela respondeu de novo com mais um sorriso e olhou em volta para ver quem estava com a garota. Mas aparentemente ela estava sozinha.
- O que está escrito na sua perna? - a garota perguntou apontando para a tatuagem dela que ficava um pouco abaixo do joelho.
- É o nome de uma música. 'Comfortably Numb'. De uma banda chamada Pink Floyd. Você já ouviu falar?
- Sim. Meu pai disse que minha mãe cantava uma música deles pra eu dormir.
- Jura? Qual música?
- Eu não sei falar o nome muito bem. 'Wish...' - a garota fez cara que estava se esforçando pra lembrar o nome da música.
- 'Wish you were here'
- Isso mesmo. Mas eu não lembro dela.
- O que aconteceu com a sua mãe?
- Ela morreu quando eu tinha 5 anos.
- E quantos anos você tem agora?- ela perguntou com um aperto no coração.
- 11. Semana que vem faço 12. - garota respondeu com aquele sorriso de criança que adora fazer aniversário.
- Parabéns.
- Obrigada.
- E você ainda ouve a música que ela cantava pra você?
- Sim. Meu pai sempre coloca o disco que era dela e ouvimos juntos toda noite.
- E você gosta?
- Gosto muito. Adoro todos os discos que eram dela. Ela deixou de presente pra mim. Disse que queria que eu gostasse de música boa quando crescesse.
- E ela tem razão. Qual você gosta mais?
- Journey. Eu fico feliz ouvindo eles.
- Que bom. - ela sentiu um calor no peito por lembrar que gostava da mesma banda quando tinha a mesma idade da garota. - Eu preciso ir agora. Mas continue ouvindo essas músicas. Ok?
- Pode deixar.
E ela voltou ao encontro de seu amado que ainda estava lendo embaixo da árvore.
Ela sentou ao seu lado. Tirou o livro das mãos dele e o beijou.
- Você tem que tomar cuidado com eles e tirar a poeira sempre que possível.
- Como assim. Eles quem?
- Se você quiser que meus discos sejam seus também você tem que cuidar deles.
- Ainda não estou entendendo.
- Deixa de ser bobo e vamos pra casa cuidar dos nossos lindos discos.
- O que aconteceu nessa caminhada que te fez querer isso?
E ela paralisou na mesma hora. Agora as peças se encaixavam. A mãe dele morreu quando ela tinha 5 anos e ela ouvia 'Wish You Were Here' com o pai todas as noites. Ia ao parque sozinha, porque antes era a mãe que a levava pra andar entre as árvores.

- Ainda não entendi nada, mas por mim tudo bem.
- Me promete uma coisa?
- O que?
- Se tivermos filhos, não vamos deixar eles ouvirem musica ruim.
E eles caminharam de volta pra casa fazendo planos para sua nova e melhorada coleção de discos.
Continuem buscando os afetos perdidos entre as faixas de um disco
- @JessyMcLovin